Num posto de escuta... Policial - autoria de Anna Wolff

E o mar magnífico ali estava. Reluzente. E eu hipnotizada nele. Observando extasiada o ciclo da vida. Pela madrugada os horizontes róseos. O sol explodindo vida irrompendo na copa das árvores. Bandos de pássaros saindo em revoada. Seis horas da manhã.

- Parece a alegria pura – comentei. Só então percebi que estava falando sozinha. Até minha voz parecia límpida na manhã tão fresca. Aproximei-me do mar. Água gelada. Fiquei ali mais de uma hora. Então cardumes de peixes minúsculos vieram mordiscar meus pés. Sete horas.

Às dez horas aparece então o Sargento Souza – co
mo o batizamos – um cachorro policial triste e silencioso. Por que Sargento Souza? – Ora essa mania que a gente tem de aproximar certas personalidades aos animais. Conhecemos um Sargento Souza deste jeito: triste, silencioso, mas inflexível. Via-se o homem sofrer, a dor estava ali nos olhos, de olhar enevoado e distante. Mas nunca deixou de fazer a sua inspeção sistemática, agressiva. Vejo o cachorro triturar os pedaços de carne que lhe dou: abocanhando-a agressivamente. E vai-se embora.

- Até à tarde, Sargento Souza!

- Sargento Padilha – retifica uma voz masculina muito forte. Sargento Souza é aquele – e me aponta outro Sargento Souza – tão forte e tão grande que faz olhá-lo duas vezes.

- Bem quer dizer... – não tenho coragem de dizer mais nada. Mas nem é preciso. Sargento Padilha vai contando.

XXXX

Quem era ingênuo? Ele: aquele noivo. Apaixonado! Aquela mulher tinha no sorriso covinhas inesperadas. Perturbadoras. Os olhos pestanudos.

- Por que você me ama?

Ele a olhava perplexo. Ela gargalhava. Aqueles dentes claros, límpidos em contraste com a pele morena. O pescoço fino. E seus olhos iam descendo, perscrutando-a. Ah, o busto! Bem alucinante. Aquele decote. E os braços dela o envolvendo.

- Por que a amo? Por tudo isso, querida! – E beijava-a. - E você?

- Eu o quê?

- Me ama?

- Claro!

- Por quê?

- Você é o tolo mais adorável do mundo!

Ela era a felicidade pura. Cristalina. Casaram-se e seguiram lua-de-mel. Foi assim um casamento rápido. Hipnotizador. Como a manhã junto ao mar. Com seus ciclos naturais – o vôo da imaginação – o mergulho na paixão. E ele caindo como um peixinho.

Ao passar ali no posto policial, foram detidos:

- Mas o que isso?

- Inspeção, madame.

- Para quê?

- Rotina. Fiscalização de drogas.

Ela tremeu. E deu para notar o jeito que segurou a bolsa. O marido tranquilo. Abriu o porta-malas. O Sargento Souza ficou observando a atitude esquiva da mulher. Como velho policial, já farejava algo.

Enquanto isto o Sargento Padilha prosseguia a inspeção.

- Podem ir – disse por fim.

- Um momento – aparteou o Sargento Souza. Falta um pequeno detalhe. E peremptório: sua bolsa madame.

- Desaforo! – explodiu ela – E por quê?

- A lei – respondeu o inflexível Sargento Souza – e tomou agressivamente sua bolsa. Assim como meu pobre cachorro tomou de minhas mãos o seu osso. E ali estava o alimento da morte: drogas. A mulher pôs-se a gritar.

O marido num flash teve todo um panorama reconstituído. A permanente necessidade dela de dinheiro. Para quê? Ingênua: ela o chamava! E as mentiras... Agora via que eram mentiras. “Mamãe doente”. “Papai com dívidas”... O médico extra para a dor de estômago dela que não passava.

- Ah, Sargento. A infração é minha. Pedi para ela que guardasse para mim.

- Então está preso – e o Sargento Padilha impôs sua prisão.

- Um momento – aparteou o Sargento Souza – e olhando para a mulher disse inflexível – Fale!

A mulher gaguejou.

- Fale! – berrou.

Ela então disse:

- É mentira.

E foi a única vez que dizendo que era mentira falava a verdade. Meio caminho para a recuperação. Acredito que baseado no amor puro como o do marido ela venha achar forças para recuperar-se. Enquanto isso na cadeia ela imagina como seria doce uma lua-de-mel. Não o doce destruidor das drogas.

Sargento Souza o policial continua sua inspeção.

Mas o meu pobre cachorro vem manso perto de mim. Olho para o céu: límpido. O mar translúcido. Abro os braços e afago meu adorado cão. Que ninguém sabe como o batizei. Deus me perdoe. E bato de leve com os dedos nos lábios. Deus me perdoe. Não vá você contar para ninguém, heim!

 

Num posto de escuta... Policial – 2

 

Ao chegar, fiz mistério.

- Não vou contar onde é.

- Mas é bom?

- Puxa!

- É, você chega ter os olhos brilhando! Deve ser mesmo ótimo. Mas... onde fica? – meu amigo parece ferver de curiosidade.

- Aí é que está. Se eu contar não vai mais haver mais lugar disponível para se acampar. Todo mundo vai querer ir.

- Egoísta!

- Egoísta não! Precavida. Já pensou nos feriados como ficaria? Imagine: praia mansa, tremendamente limpa, e ultra policiada... Sem ninguém para usá-la!

Eu, minha família num acampamento em céu aberto, sem perigo algum!


- E isto existe?

- Claro!

- Não, é pura imaginação sua – contesta ele.

- Pois ali, naquele lugar incrível do Brasil...

- Primeira pista! – diz meu amigo com jeito de 007.

- E última – corto eu. Continuo: Ali – com sombras de árvores esparramando-se para dentro do mar – a gente pensa que nada mais no mundo importa...

Uma rede presa aos troncos das amendoeiras e uma gostosa madorna vai invadindo nosso corpo depois de um banho de mar infindável.

E quanta coisa acontece, por ali, rapaz! Você nem é capaz de acreditar...

- Deu para você imaginar muito romance, poesia, ou o que mais?

- Casos! Casos reais mesmo! Pois ali é um posto rodoviário. Fiscalização de divisa de município.

- Deve ter gente atropelada, toda hora. Isso, você acha bom? – pergunta meu amigo entre irônico e alarmado.

- Boa, é a praia que costeia o posto policial. E a gente se quiser nem vê nada. Só virar as costas e ficar olhando para o mar. Sorvendo a brisa suave que balança nossa rede.

- Mas você não fez isso... duvida meu amigo.

- Fiz. Mas de repente na minha frente, estava um homem velho, achei que dançava. Mas não... parecia drogado.

- Maconha?

- Motorista de um maconheiro.

- Nada mal. Mas... então?

Tudo havia se passado enquanto eu escancarava os braços para abraçar o oceano que vertia reflexos de luz na minha frente. Fiquei sabendo...

XXX

Foi assim. Caía a tarde. O calor sufocava a cidade. Um passageiro com uma sacola de lona pesada, toma o carro. Como quem está exausto pergunta ao motorista:

- Você se importaria de um percurso longo?

- Questão de combinar o preço – diz o motorista – Para que lado quer ir?

O passageiro ajeita a sacola. Puxa um pigarro, e dá o itinerário. O motorista diz a tarifa. Tudo acertado é só deixar o carro rolar. O calor desanima qualquer conversa. Depois de uma hora de trafegar por uma pista de escoamento difícil, já sentindo a brisa do mar o passageiro respira fundo. O motorista procura um papo.

- Calor terrível, não é mesmo?

- Terrível, confirma o passageiro.

- Nada como a brisa do mar. Vai tirar férias?

- É – e de forma lacônica o passageiro busca se acomodar, no silêncio.

O motorista está cansado. Não vê a hora de ir para casa. Sua cervejinha gelada. A boa Maria lhe dá o pijama fresco e comidinha que esquenta para ele. Mas isto hoje vai ter de esperar. Afinal, é a melhor féria do dia.

Passam então no posto policial rodoviário. O motorista despreocupado comenta:

- Ah, hoje é sexta-feira. Dia de blitz.

- Quê? – pergunta o passageiro alarmado. Dá um puxão na sacola e tenta saída pela lateral esquerda, sem conseguir saltar no acostamento.

Outro policial vem justamente deste lado. O passageiro puxa o revólver. O policial mais esperto usa a porta do carro num movimento repentino prende o pulso do passageiro que já lhe apontava o revólver... os policiais se aproximam. Levam o pesado saco de lona, de aparência ingênua, de quem vai para a praia.

Preso e autuado por porte indevido de arma, o ex-passageiro confessa ao policial:

- Ia dar um fim neste motorista.

- Por quê?

- Lixo do mundo.

- O quê? Não entendi.

- Este diabo sofre e não toma jeito. É covarde. Não sabe mudar a vida. É lixo do mundo. Trabalha, sua, fede, nunca tem nada. Ia aliviar o cara.

- Matando-o?

- Mandando-o para uma melhor – Pro diabo que o carregue.

No chão um calibre 32 que o policial pega rapidamente. Aberta a sacola, uma quantidade incrível de dinheiro solta as vistas. Um fascínio hipnotizador paralisa os que está ali.

- De onde é isto? – pergunta o policial alarmado.

- De um supermercado. – cita o nome – Vocês estão vendo quanto os caras roubam o povo?

- E você? Roubando supermercado não está roubando o povo mais ainda? O supermercado vai subir o preço para cobrir esta diferença. E quem vai pagar?

- O povo... e o assaltante pela primeira vez pensa. Vai ter tempo de sobra para pensar. Na prisão.

O motorista acusado de fedorento entra com roupa e tudo na água. Vejo que se agita. Estaria tendo alguma convulsão? Não as pernas não param. Treme de pensar.

Este não quer pensar nem com todo tempo do mundo.

E eu? Voltada para o mar não penso em nada. Apenas vivo.

Nas minhas costas o mundo solo.

E mais casos aconteciam.

 //

 

Publicado no Jornal da Serra, em Nova Friburgo, em 1979.


Ana Maria Wolff é escritora, professora de Inglês com diploma da Universidade de Michigan. Anna Wolff é o pseudônimo que usa devido aos seus livros registrados em inglês. Nascida no Paraná tem o romance: “Deus dos Acontecimentos”, registrado na Biblioteca de Washington, EUA. É ainda autora de Percepção - Guia mágico de sobrevivência na selva das emoções, e Roteiro de uma vida - Poesia e Violão. Falou em todos os canais de TV, onde fez antecipações com comprovação total dos seus acertos.

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