Num posto de escuta... Policial - autoria de Anna Wolff
- Parece a alegria pura – comentei. Só então percebi
que estava falando sozinha. Até minha voz parecia límpida na manhã tão fresca.
Aproximei-me do mar. Água gelada. Fiquei ali mais de uma hora. Então cardumes
de peixes minúsculos vieram mordiscar meus pés. Sete horas.
Às dez horas aparece então o Sargento Souza – co
mo o
batizamos – um cachorro policial triste e silencioso. Por que Sargento Souza? –
Ora essa mania que a gente tem de aproximar certas personalidades aos animais.
Conhecemos um Sargento Souza deste jeito: triste, silencioso, mas inflexível.
Via-se o homem sofrer, a dor estava ali nos olhos, de olhar enevoado e
distante. Mas nunca deixou de fazer a sua inspeção sistemática, agressiva. Vejo
o cachorro triturar os pedaços de carne que lhe dou: abocanhando-a
agressivamente. E vai-se embora.
- Até à tarde, Sargento Souza!
- Sargento Padilha – retifica uma voz masculina muito
forte. Sargento Souza é aquele – e me aponta outro Sargento Souza – tão forte e
tão grande que faz olhá-lo duas vezes.
- Bem quer dizer... – não tenho coragem de dizer mais
nada. Mas nem é preciso. Sargento Padilha vai contando.
XXXX
Quem era ingênuo? Ele: aquele noivo. Apaixonado!
Aquela mulher tinha no sorriso covinhas inesperadas. Perturbadoras. Os olhos
pestanudos.
- Por que você me ama?
Ele a olhava perplexo. Ela gargalhava. Aqueles dentes
claros, límpidos em contraste com a pele morena. O pescoço fino. E seus olhos
iam descendo, perscrutando-a. Ah, o busto! Bem alucinante. Aquele decote. E os
braços dela o envolvendo.
- Por que a amo? Por tudo isso, querida! – E
beijava-a. - E você?
- Eu o quê?
- Me ama?
- Claro!
- Por quê?
- Você é o tolo mais adorável do mundo!
Ela era a felicidade pura. Cristalina. Casaram-se e
seguiram lua-de-mel. Foi assim um casamento rápido. Hipnotizador. Como a manhã
junto ao mar. Com seus ciclos naturais – o vôo da imaginação – o mergulho na
paixão. E ele caindo como um peixinho.
Ao passar ali no posto policial, foram detidos:
- Mas o que isso?
- Inspeção, madame.
- Para quê?
- Rotina. Fiscalização de drogas.
Ela tremeu. E deu para notar o jeito que segurou a
bolsa. O marido tranquilo. Abriu o porta-malas. O Sargento Souza ficou
observando a atitude esquiva da mulher. Como velho policial, já farejava algo.
Enquanto isto o Sargento Padilha prosseguia a
inspeção.
- Podem ir – disse por fim.
- Um momento – aparteou o Sargento Souza. Falta um
pequeno detalhe. E peremptório: sua bolsa madame.
- Desaforo! – explodiu ela – E por quê?
- A lei – respondeu o inflexível Sargento Souza – e
tomou agressivamente sua bolsa. Assim como meu pobre cachorro tomou de minhas
mãos o seu osso. E ali estava o alimento da morte: drogas. A mulher pôs-se a
gritar.
O marido num flash teve todo um panorama
reconstituído. A permanente necessidade dela de dinheiro. Para quê? Ingênua:
ela o chamava! E as mentiras... Agora via que eram mentiras. “Mamãe doente”.
“Papai com dívidas”... O médico extra para a dor de estômago dela que não
passava.
- Ah, Sargento. A infração é minha. Pedi para ela que
guardasse para mim.
- Então está preso – e o Sargento Padilha impôs sua
prisão.
- Um momento – aparteou o Sargento Souza – e olhando
para a mulher disse inflexível – Fale!
A mulher gaguejou.
- Fale! – berrou.
Ela então disse:
- É mentira.
E foi a única vez que dizendo que era mentira falava a
verdade. Meio caminho para a recuperação. Acredito que baseado no amor puro
como o do marido ela venha achar forças para recuperar-se. Enquanto isso na
cadeia ela imagina como seria doce uma lua-de-mel. Não o doce destruidor das
drogas.
Sargento Souza o policial continua sua inspeção.
Mas o meu pobre cachorro vem manso perto de mim. Olho
para o céu: límpido. O mar translúcido. Abro os braços e afago meu adorado cão.
Que ninguém sabe como o batizei. Deus me perdoe. E bato de leve com os dedos
nos lábios. Deus me perdoe. Não vá você contar para ninguém, heim!
Num posto de escuta... Policial – 2
Ao chegar, fiz mistério.
- Não vou contar onde é.
- Mas é bom?
- Puxa!
- É, você chega ter os olhos brilhando! Deve ser mesmo
ótimo. Mas... onde fica? – meu amigo parece ferver de curiosidade.
- Aí é que está. Se eu contar não vai mais haver mais
lugar disponível para se acampar. Todo mundo vai querer ir.
- Egoísta!
- Egoísta não! Precavida. Já pensou nos feriados como
ficaria? Imagine: praia mansa, tremendamente limpa, e ultra policiada... Sem
ninguém para usá-la!
Eu, minha família num acampamento em céu aberto, sem
perigo algum!
- E isto existe?
- Claro!
- Não, é pura imaginação sua – contesta ele.
- Pois ali, naquele lugar incrível do Brasil...
- Primeira pista! – diz meu amigo com jeito de 007.
- E última – corto eu. Continuo: Ali – com sombras de
árvores esparramando-se para dentro do mar – a gente pensa que nada mais no
mundo importa...
Uma rede presa aos troncos das amendoeiras e uma
gostosa madorna vai invadindo nosso corpo depois de um banho de mar infindável.
E quanta coisa acontece, por ali, rapaz! Você nem é
capaz de acreditar...
- Deu para você imaginar muito romance, poesia, ou o
que mais?
- Casos! Casos reais mesmo! Pois ali é um posto
rodoviário. Fiscalização de divisa de município.
- Deve ter gente atropelada, toda hora. Isso, você
acha bom? – pergunta meu amigo entre irônico e alarmado.
- Boa, é a praia que costeia o posto policial. E a
gente se quiser nem vê nada. Só virar as costas e ficar olhando para o mar.
Sorvendo a brisa suave que balança nossa rede.
- Mas você não fez isso... duvida meu amigo.
- Fiz. Mas de repente na minha frente, estava um homem
velho, achei que dançava. Mas não... parecia drogado.
- Maconha?
- Motorista de um maconheiro.
- Nada mal. Mas... então?
Tudo havia se passado enquanto eu escancarava os
braços para abraçar o oceano que vertia reflexos de luz na minha frente. Fiquei
sabendo...
XXX
Foi assim. Caía a tarde. O calor sufocava a cidade. Um
passageiro com uma sacola de lona pesada, toma o carro. Como quem está exausto
pergunta ao motorista:
- Você se importaria de um percurso longo?
- Questão de combinar o preço – diz o motorista – Para
que lado quer ir?
O passageiro ajeita a sacola. Puxa um pigarro, e dá o
itinerário. O motorista diz a tarifa. Tudo acertado é só deixar o carro rolar.
O calor desanima qualquer conversa. Depois de uma hora de trafegar por uma
pista de escoamento difícil, já sentindo a brisa do mar o passageiro respira
fundo. O motorista procura um papo.
- Calor terrível, não é mesmo?
- Terrível, confirma o passageiro.
- Nada como a brisa do mar. Vai tirar férias?
- É – e de forma lacônica o passageiro busca se
acomodar, no silêncio.
O motorista está cansado. Não vê a hora de ir para
casa. Sua cervejinha gelada. A boa Maria lhe dá o pijama fresco e comidinha que
esquenta para ele. Mas isto hoje vai ter de esperar. Afinal, é a melhor féria
do dia.
Passam então no posto policial rodoviário. O motorista
despreocupado comenta:
- Ah, hoje é sexta-feira. Dia de blitz.
- Quê? – pergunta o passageiro alarmado. Dá um puxão
na sacola e tenta saída pela lateral esquerda, sem conseguir saltar no
acostamento.
Outro policial vem justamente deste lado. O passageiro
puxa o revólver. O policial mais esperto usa a porta do carro num movimento
repentino prende o pulso do passageiro que já lhe apontava o revólver... os
policiais se aproximam. Levam o pesado saco de lona, de aparência ingênua, de
quem vai para a praia.
Preso e autuado por porte indevido de arma, o
ex-passageiro confessa ao policial:
- Ia dar um fim neste motorista.
- Por quê?
- Lixo do mundo.
- O quê? Não entendi.
- Este diabo sofre e não toma jeito. É covarde. Não
sabe mudar a vida. É lixo do mundo. Trabalha, sua, fede, nunca tem nada. Ia
aliviar o cara.
- Matando-o?
- Mandando-o para uma melhor – Pro diabo que o
carregue.
No chão um calibre 32 que o policial pega rapidamente.
Aberta a sacola, uma quantidade incrível de dinheiro solta as vistas. Um
fascínio hipnotizador paralisa os que está ali.
- De onde é isto? – pergunta o policial alarmado.
- De um supermercado. – cita o nome – Vocês estão
vendo quanto os caras roubam o povo?
- E você? Roubando supermercado não está roubando o
povo mais ainda? O supermercado vai subir o preço para cobrir esta diferença. E
quem vai pagar?
- O povo... e o assaltante pela primeira vez pensa.
Vai ter tempo de sobra para pensar. Na prisão.
O motorista acusado de fedorento entra com roupa e
tudo na água. Vejo que se agita. Estaria tendo alguma convulsão? Não as pernas
não param. Treme de pensar.
Este não quer pensar nem com todo tempo do mundo.
E eu? Voltada para o mar não penso em nada. Apenas
vivo.
Nas minhas costas o mundo solo.
E mais casos aconteciam.
Publicado no Jornal da Serra, em Nova Friburgo, em 1979.
Ana Maria Wolff é escritora, professora de Inglês com diploma da Universidade de Michigan. Anna Wolff é o pseudônimo que usa devido aos seus livros registrados em inglês. Nascida no Paraná tem o romance: “Deus dos Acontecimentos”, registrado na Biblioteca de Washington, EUA. É ainda autora de Percepção - Guia mágico de sobrevivência na selva das emoções, e Roteiro de uma vida - Poesia e Violão. Falou em todos os canais de TV, onde fez antecipações com comprovação total dos seus acertos.
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